Não é de hoje que, em conversas entre profissionais vidreiros, revela-se a dificuldade em encontrar mão de obra qualificada e interessada para nossas empresas. E esse cenário é muito mais abrangente do que aparenta: a indústria nacional como um todo, além de outros setores, como o de varejo e o de serviços, também sofre com a questão. Mas por quê?
Achar uma resposta pode ser uma tarefa complexa, já que o assunto envolve diversos tópicos distintos – da mudança de percepção da geração Z, formada por nascidos a partir da segunda metade dos anos 1990, sobre como encarar o trabalho à queda da atratividade do regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), passando ainda pelo crescimento da noção de empreendedorismo individual, entre outros aspectos.
Números do mercado
De acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), 58,7% das empresas do País relatam dificuldades para conseguir novos funcionários ou reter trabalhadores antigos – e, entre as que enfrentam tal adversidade, quase 80% apontam a contratação como o maior desafio quando se fala em gestão de mão de obra. O estudo, realizado em outubro, consultou 3.707 companhias de variados setores (indústria, comércio, serviços e construção civil).
Para o economista Rodolpho Tobler, coordenador das sondagens empresariais do FGV Ibre, é justamente a construção civil a cadeia mais afetada pela questão: a oferta de mão de obra não cresce na mesma proporção que a demanda, especialmente após projetos do governo federal para o fomento da atividade, como a expansão do programa Minha Casa, Minha Vida. Mais de 20% das empresas desse segmento estão atrasando entregas e 18% chegam ao ponto de rejeitar novos contratos – para comparação, a média percentual de todos os setores juntos é de 8,4%.
“O crescimento potencial do Brasil poderia ser maior se tivéssemos mão de obra qualificada que conseguisse atender toda essa demanda. Enquanto não temos, isso reforça nossos problemas estruturais”, comenta Tobler em uma reportagem do jornal O Globo, publicada em novembro, após a divulgação do estudo. “Apesar do aumento da escolaridade, muitas vezes essa qualificação não é direcionada para as demandas do mercado, o que compromete os ganhos de produtividade.”
No ano passado, a falta ou o alto custo de trabalhadores qualificados foram a preocupação que mais cresceu entre os industriais no terceiro trimestre, segundo a pesquisa Sondagem Industrial, da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Em relação à medição anterior, o crescimento foi de quase cinco pontos percentuais, passando de 18,6% para 23%, fazendo o problema pular do 6º para o 3º lugar na lista de preocupações. “Isso tem a ver com questões ligadas ao mercado de trabalho aquecido e ao próprio aumento da produção. É uma questão que preocupa, pois pressiona custos das empresas. Consequentemente, pode prejudicar a avaliação da situação financeira e a recuperação da indústria a médio prazo”, aponta o gerente de Análise Econômica da entidade, Marcelo Azevedo.
O mais curioso é a situação ocorrer em meio ao menor nível de desemprego do País desde 2012 (6,2%).
- Como indicou reportagem da Veja publicada em fevereiro, o número de pessoas ocupadas cresceu 9% entre dezembro de 2019 e dezembro de 2024;
- No mesmo período, o contingente de desocupados caiu 43%;
- E o número de pessoas em idade para trabalhar subiu 4,6%;
- Isso tudo indica um grande contingente de pessoas disponíveis para trabalho. No entanto, somente 63% dessas pessoas estavam inseridas no mercado no fim do ano passado.
Parte disso pode ser explicada por transformações naturais ocorridas nos negócios ao longo dos anos, incluindo o surgimento de diferentes formas de consumo e o avanço da tecnologia. O setor varejista, por conta do aumento significativo do comércio online, viu diminuir a demanda por vendedores em lojas físicas e aumentar a procura por profissionais voltados para as áreas de tecnologia e logística. Mas questões geracionais e mudanças na forma de encarar o trabalho também contribuem para a questão.
Um novo tipo de trabalhador
Conceitos como trabalho remoto ou híbrido e flexibilidade de horários se tornaram parte da vida de diversos trabalhadores por conta da pandemia. E isso fez com que tais atributos passassem a ser mais valorizados por quem procura emprego.
Estudo do economista Bruno Imaizumi, da LCA 4intelligence, com base em dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), revela que 37,9% dos desligamentos em janeiro de 2025 foram a pedido do trabalhador – a taxa vem subindo desde 2020.
“Entram na conta qualidade de vida e tempo de deslocamento. E ainda, como ficou muito mais fácil abrir empresa, há crescimento de microempreendedores individuais (MEIs). Empregos que exigem presença física, como indústria e construção civil, perdem. Tem a questão do e-commerce e da digitalização. Com a taxa de desemprego baixa, com esses níveis de demissão em patamares elevados, as empresas terão de se adequar às novas relações de trabalho, repensar bastante como manter esses funcionários”, comenta Imaizumi em matéria de O Globo.
Nessa mesma reportagem, o professor do Departamento de Sociologia e do Núcleo de Estudos de Trabalho e Sociedade da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Tiago Magaldi, afirma que uma das grandes mudanças no mercado de trabalho é a derrocada da CLT: “Não em sua perspectiva objetiva, de proteção ao trabalhador, mas na expectativa de inclusão, de futuro. Ele ganha mais em troca de aceitar não ter vínculo trabalhista, fazem uma leitura pragmática da situação”.
Isso pode ajudar a explicar a alta taxa de rotatividade: mais de um terço dos trabalhadores com carteira assinada mudaram de emprego nos últimos 12 meses, segundo o estudo da LCA. Em fevereiro, por volta de 40% dos profissionais com até 29 anos haviam trocado de ocupação ao longo do último ano. O conceito da “uberização” do trabalho, no qual a pessoa pode ser a “chefe” de si mesma, trabalhando para plataformas como Uber e iFood, também entra nessa conta complexa.
Um levantamento produzido pelo Instituto Ideia mostra que 30% dos jovens sonham ter o próprio negócio. Ter carteira assinada, portanto, é algo considerado “ultrapassado” para as gerações mais novas. E isso tudo acaba se provando na prática. “Vemos cada vez mais pessoas procurando por um emprego, mas poucas realmente dispostas a trabalhar, especialmente quando a função exige esforço, dedicação ou envolvimento mais intenso. Existe uma percepção de que qualquer trabalho que demande mais energia já não vale a pena, o que cria um desalinhamento entre as oportunidades oferecidas e a disposição real de parte dos candidatos”, relata a diretora de Suprimentos da processadora Cyberglass, Gláucia Guerrero. “Além disso, a alta rotatividade e a mudança no perfil dos profissionais, que agora valorizam mais propósito e flexibilidade, tornam a retenção um desafio. Tudo isso reforça a necessidade de processos seletivos cada vez mais estratégicos e assertivos”, comenta o CEO da empresa, José Domingos Seixas.
Os principais motivos para pedidos de demissão em janeiro de 2025
- Novas vagas em vista
- Salários baixos
- Saúde mental
- Problemas éticos nas empresas
- Falta de flexibilidade na carga horária
Fonte: LCA 4intelligence, com base em dados do Caged

O que fazer sendo empresário?
Seis em cada dez empregadores pelo mundo já demitiram profissionais da Geração Z recém-formados. As motivações para as demissões incluem falta de motivação ou iniciativa (50%), habilidade de comunicação precária (39%) e falta de profissionalismo (46%). Os dados são da plataforma internacional de educação Intelligent.com.
Mas a demissão de quem representa parte do presente e o futuro da mão de obra não pode ser normalizada. A pesquisa do FGV Ibre citada anteriormente revela ações tomadas pelos empresários para reverter a escassez de mão de obra: 44% investem na capacitação interna, desenvolvendo meios para qualificar o funcionário uma vez que ele está dentro da organização – considerando apenas a indústria, mais da metade das empresas vem adotando essa prática. Aumentar benefícios é a escolha de 32% dos entrevistados.
No setor vidreiro, a PKO é um exemplo da aposta em treinamentos. “O que a gente tenta é mostrar com clareza a empresa na qual a pessoa está entrando. Então, cada vez mais temos nos aprofundado em recursos humanos, para que mudemos um pouco esse cenário e as pessoas queiram vir trabalhar conosco”, explica Myrian Ang, diretora-executiva da companhia.
Pensando nisso, a processadora criou o programa Universidade PKO, que possui trilhas de conhecimento para desenvolver habilidades dos funcionários – em áreas como as de liderança, atendimento e excelência técnica, entre outras. “A gente acredita nesse projeto como um dos pilares para a retenção. Mas não basta só qualificar: é preciso ter um programa claro de cargos e salários, estimular o autodesenvolvimento para que as pessoas olhem para a carreira que querem seguir dentro da empresa”, comenta Myrian. “São diversas ações que fazem com que quem está aqui permaneça – aliadas ainda a uma cultura colaborativa, que busca criar um ambiente bom, de troca.”
Mas a qualificação ajuda a resolver apenas um ponto do assunto. Como agir diante da diferença de valores e visões de mercado entre diferentes gerações? “É essencial reconhecer as habilidades e experiências únicas que cada grupo traz para a mesa”, orienta a especialista em gestão de pessoas Manu Pelleteiro em depoimento para a CNN Brasil. Para quebrar barreiras e contornar estereótipos, ela sugere “mentorias reversas”, com jovens ensinando habilidades tecnológicas enquanto os mais velhos compartilham vivências práticas. “O estigma de que as pessoas mais velhas são inflexíveis pode dificultar a comunicação e a colaboração intergeracional. No entanto, é importante não generalizar, pois muitos profissionais mais velhos também podem ser adaptáveis e abertos a novas ideias, além de a experiência ser um fator que pode colaborar muito ao enfrentar novos desafios”, explica.
E além do papel do contratante, as pessoas contratadas também precisam tentar se adaptar às realidades do mercado de trabalho. “A nova geração muitas vezes não foi preparada para lidar com responsabilidade e resiliência. Sem uma mudança de cultura dentro das famílias, incentivando disciplina, dedicação e compromisso desde cedo, vai ser muito difícil mudar esse cenário só com ações das empresas”, afirma o diretor de Operações da Cyberglass, Rodrigo Guerrero.
Relações mais saudáveis
Em relação aos jovens da geração Z, especialistas em recursos humanos indicam ações que gestores de pessoas podem tomar para estreitar os laços na empresa (afinal, relações profissionais devem ser vias de mão dupla):
- Evitar conflitos: não incentive um clima de “nós” (quem já está na empresa) contra “eles” (os novatos). É possível ensinar aprendendo. Novas gerações podem ter ideias disruptivas sobre o futuro de um negócio, por exemplo;
- Estar aberto para novas possibilidades: jovens valorizam ambientes com os quais têm a oportunidade de contribuir de forma menos fria e mais pessoal;
- Olhar para si mesmo: se a empresa tem muitos problemas com funcionários jovens, um movimento interessante, ao invés de somente culpá-los, é analisar a cultura de trabalho da fábrica. Talvez as cobranças e oportunidades oferecidas não sejam as ideias para se criar um ambiente saudável – e ajustes precisarão ser feitos.

Assistencialismo social x falta de mão de obra: qual a relação?
Com a ampliação do programa Bolsa Família durante a pandemia, surge a dúvida em parte dos setores econômicos se o assistencialismo social não contribuiria para a falta de mão de obra – pois os contemplados poderiam ter receio de perder o benefício no caso de conseguirem empregos, evitando se candidatar a vagas disponíveis.
Na verdade, dados mostram uma situação inversa. Segundo levantamento do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), no ano passado, 75,5% das vagas no mercado de trabalho foram ocupadas por beneficiários do Bolsa Família.
Já existe, inclusive, um dispositivo para evitar essa situação: o governo federal criou em 2023 a Regra de Proteção, garantindo que parte do benefício continue sendo recebida por um período de até dois anos após a conquista de um emprego. Com isso, a pessoa terá maior segurança enquanto se estabilizar financeiramente.
Estudo de Gabriel Mariante, pesquisador de doutorado na London School of Economics (LSE), mostra que mulheres beneficiárias do Bolsa Família têm uma probabilidade 7,4% maior de se inserir no mercado formal de trabalho do que mulheres não beneficiárias.