Há cerca de um ano, o setor vidreiro nacional foi impactado pelas imagens da unidade fabril da processadora Lajeadense, na cidade de Lajeado, totalmente destruída, tomada pelas águas das enchentes históricas que ocorreram no Rio Grande do Sul em abril e maio do ano passado. Apesar das dificuldades, a empresa apostou na resiliência e conseguiu se reerguer – hoje, a obra para sua nova sede, em outra região da cidade, está a todo vapor, com previsão para as primeiras máquinas operarem até o meio do ano.
Rotina de perdas
Na tragédia do ano passado, o Rio Taquari, que passa pela cidade de Lajeado, subiu dos seus habituais 13 m para impressionantes 32 m – em dois dias, choveu a quantidade prevista para seis meses na região. Em imagens aéreas, era possível ver apenas o telhado da Lajeadense cercado pela água revolta e enlameada que descia desgovernada o Vale do Taquari.
Mas essa enchente não foi a primeira enfrentada pela empresa de mais de 65 anos de história. “Eu me lembro desde a minha infância de ter enchente. Era algo comum na nossa cidade, na nossa região”, conta Roberta Lopes Arenhart, sócia-administrativa e filha de Renato Arenhart, dirigente do negócio. No entanto, tais fenômenos se tornaram mais violentos nos últimos anos. Em 2020, após chuvas torrenciais, cerca de 20 cm de água entraram na empresa, estragando móveis e cabos de máquinas – mas isso não foi nada perto do que viria a acontecer a partir de 2023.

Em setembro daquele ano, o Taquari subiu 29 m. Com isso, o 1º andar inteiro da empresa foi destruído. “Como a gente tinha uma noção de onde a água podia chegar, na noite anterior nós fomos com o pessoal para a empresa para levantar algumas coisas, botar equipamentos em cima das mesas – o que sempre fazíamos quando chovia bastante. Lembro que até mandei mensagem no grupo dos colaboradores dizendo para todos irem com uma roupa mais simples no dia seguinte para ajudar na limpeza, caso sujasse algo”, recorda Roberta. “Só que aí, quando voltamos de manhã, não tinha mais nada.” Naqueles dias, seu pai, Renato, estava na Itália visitando a Vitrum, tradicional feira de nosso setor. O irmão de Roberta, Regis, e um primo, Tomás, tentaram salvar mais coisas, mas a enchente subiu tão rapidamente que tiveram de abortar a missão e se refugiar no 2º andar da empresa – lugar no qual ficaram por dois dias, até a água baixar.
Dois meses depois, em novembro, ainda se recuperando do baque, a Lajeadense teve de encarar outra cheia. “Essa não foi tão ruim na questão do volume de água, mas a gente estava há pouco tempo trabalhando na recuperação de maquinário, com equipamentos operando de novo, as coisas fluindo. E estragou tudo de novo. Tudo que a gente tinha investido financeiramente para recuperar foi pro lixo”, comenta a sócia-administrativa.

Negócio destruído
Estima-se que o prejuízo da enchente de 2024 gire em torno dos R$ 70 milhões. “É até difícil de precisar um número, porque foram tantas enchentes, e ainda tem a questão de não só o que a gente perdeu, mas o que deixou de faturar nesses meses”, explica Roberta. Só de matéria-prima, foram mais de 200 t de vidro inutilizadas. E o impacto poderia ser ainda maior: após a enchente de novembro, a empresa alugou um espaço na cidade vizinha Estrela, instalando ali parte da produção e o PCP – em Lajeado, ficaram três máquinas e todo o administrativo-comercial.
“A gente fez a manutenção dos maquinários estragados nas enchentes anteriores e eles voltaram a operar. O que foi bem-danificado foi o vidro temperado, pois ficamos sem o forno. Mas fomos até outras empresas ali da região da Serra para temperar. Esses parceiros nos ajudaram muito, abriram as portas para nós”, recorda Roberta.

Reconstrução
Em outubro, começou a reconstrução da empresa, agora não mais junto ao Taquari. “Hoje nós estamos com mais da metade do piso colocada na nova sede. Nos próximos dois meses, a gente vai estar com máquina ali. Depois, ainda tem a finalização do refeitório, a parte administrativa, comercial, escritórios. Mas a partir de junho ou julho já estaremos com a operação funcionando”, afirma Roberta. Para levantar os investimentos necessários, a Lajeadense recorreu a bancos parceiros de longa data. “Tivemos de fazer vários financiamentos para comprar o terreno, investir no prédio. Não temos uma conta fechada de tudo, e ainda vamos precisar de mais recursos para finalizar, mas está dando certo.”
A fábrica em construção será uma evolução da antiga: de 7 mil, passará a ter 12 mil m² em linha – o que significa maior otimização e eficiência, tanto no layout como nos processos, sem cantos mortos. Segundo a diretoria da processadora, o projeto foi pensado para o bem-estar do colaborador, com telhas térmicas para suportar o verão quente do Rio Grande do Sul, espaço para crianças e até quadra de esportes. “É um sentimento curioso, pois, se a gente não tivesse passado pelo que passou, não teria a oportunidade de recomeçar a empresa. Provavelmente, teríamos continuado ali sempre no mesmo lugar, fazendo puxadinhos para ampliar. E, agora, temos a chance de fazer uma empresa do zero, planejada para mais sessenta anos.
Conheça a Lajeadense
- Fundada em 1958, como vidraçaria
- Em 2002, passa a atuar como processadora
- Conta com 100 funcionários atualmente
- Nova sede terá 12 mil m² de área
- Produção tem foco em vidros para projetos especiais – um dos carros-chefes são os insulados, comercializados com a marca Duoglass

“Foi a equipe que fez a gente não desistir da Lajeadense”
Roberta Lopes Arenhart comenta a importância de criar uma rede de apoio aos colaboradores afetados na vida pessoal pela tragédia de 2024
Em que momento vocês tiveram a dimensão da gravidade do que estava acontecendo no ano passado?
Roberta Lopes Arenhart – Foi um dia muito louco, parecia fim de mundo. Era o centro da cidade trancado, cada um correndo para um lado. A gente ficou em um lugar mais alto, em que conseguia acompanhar como estava a empresa. No meio da tarde, um amigo nosso de Lajeado, que tem jet ski, nos deu ajuda e levou meu irmão para pegar alguns documentos que ele achava importantes, do comercial, do administrativo. Fizeram duas viagens de jet ski e foi o que deu, por conta da correnteza. A gente salvou o que deu até certo momento; chega uma hora que não tem como botar nossa vida em risco.
O que chamou a atenção do setor foi a resiliência de vocês. Passado o momento mais crítico, a gente viu o engajamento de vocês para a recuperação do espaço físico, a ajuda aos colaboradores afetados. Como isso se deu?
RLA – Tudo na vida é experiência, né? Como a gente tinha sofrido com enchentes antes, isso fez com que tivesse mais força para lidar com a situação, mesmo com uma proporção muito maior. Quando baixou a água, vimos que a situação era catastrófica. E o que mais estava nos assustando era em relação aos colaboradores. A gente não tinha mais contato com todo mundo, pois ficamos sem sinal de celular em Lajeado.
Como a tragédia tomou essa proporção de nível nacional, empresas vidreiras de todo o Brasil começaram a nos chamar pelo Instagram e WhatsApp para ajudar de alguma forma. A gente falava para mandar mantimentos, roupas, cobertores, mas todo mundo queria enviar dinheiro. Então, pensamos em focar nos colaboradores que perderam a casa, perderam tudo. Por isso, abri um PIX, fizemos vídeo divulgando nas redes sociais e conseguimos arrecadar um valor muito legal, que foi dividido entre os funcionários. E como foi inacreditável a quantidade de valor doado, dividimos também entre os pais, sogros e irmãos de cada funcionário. No total, a gente conseguiu ajudar 35 famílias afetadas.
Você comentou sobre rede social, e a Lajeadense realmente tem um trabalho muito forte de comunicação pela Internet. Qual é a importância de ter esse contato mais próximo com o mercado?
RLA – Nós iniciamos esse trabalho mais forte a partir de 2021. Depois das enchentes, ganhamos bastantes seguidores e visibilidade nas redes sociais. E é muito legal ver o respaldo dos clientes e dos fornecedores acompanhando o que fazemos. A gente sabe que o nosso cliente final não está ali todo dia no Instagram, mas eu entendo muito essa questão de plantar para colher no futuro. Lá na frente, nosso cliente vai ser quem está hoje acompanhando as redes sociais. Por isso eu incentivo muito a questão da mão de obra, divulgar os projetos, o produto final.
Vocês estão otimistas com o ano de 2025 para o mercado vidreiro?
RLA – Eu tenho um pouco de dúvidas. Até agora não foi um ano tão positivo assim, mas acho que tem bastante coisa para acontecer, e talvez a gente consiga sair com algo positivo.
E como você imagina o futuro da Lajeadense, após a reconstrução pela qual estão passando?
RLA – Desde que eu entrei na empresa, sempre me imaginava indo para o mesmo local de trabalho, com as mesmas pessoas, tendo uma rotina padrão. E depois de tudo que aconteceu, a gente vê que a vida nos dá vários sustos, mas no final as coisas dão certo. Tenho certeza que a Lajeadense ainda tem muito a prosperar, principalmente com a equipe que a gente tem – pois é isso que faz a diferença no nosso dia a dia. Foi a equipe que não fez a gente desistir da Lajeadense. Olhar todo mundo ali engajado, querendo fazer acontecer, é isso que faz a diferença na nossa vida. Tenho certeza que vai dar certo.
Qual seria o seu conselho para empresas que estão passando por dificuldades?
RLA – Acho que o segredo foi ser uma empresa familiar com todo mundo um ao lado do outro. Às vezes era bem difícil, porque todo mundo ficava mal junto. Mas eu acho que isso faz a diferença, especialmente com uma equipe muito diferenciada como a nossa. A gente tem uma cultura muito forte, pois, além da nossa família lá dentro, nós temos uma relação de família com todo mundo. Então, talvez o segredo para conseguir passar por qualquer dificuldade seja ter uma equipe engajada que acredita no teu negócio e em quem tu confias.
Fotos: Divulgação Lajeadense